CONTINUAÇÃO DO IMPERIALISMO

26/02/2011 08:43

 

A NOVA FACE DO IMPERIALISMO

 

 

Foi na primavera de 1916, em plena orgia de sangue e de destruição que afogava a “civilização” européia, empenhada em decidir, em campo de batalha continental, a quais potências pertenceria a parte do leão no mercado mundial e na pilhagem do mundo colonial, que Lênin escreveu Imperialismo, estágio superior do capitalismo. A tese fundamental desta obra decisiva está expressa no próprio título: o capitalismo se tornou imperialismo. Suas cinco principais características constituem transformações do modo capitalista de produção chegado à maturidade em escala internacional: (1) concentração do processo produtivo, gerando os monopólios; (2) predomínio do capital bancário sobre o industrial, formando a oligarquia financeira; (3) predomínio da exportação de capitais sobre a de mercadorias; (4) divisão econômica do planeta entre os trustes; (5) conclusão da divisão territorial do planeta entre as grandes potências imperialistas.

 

O marxista estadunidense James O’Connor ponderou, num estudo publicado em 1970[1], que as objeções dirigidas à teoria do imperialismo, tal como desenvolvida por Lênin, bem como a Hobson (em quem o grande marxista russo se apoiou criticamente), assim como as visões alternativas que foram propostas, “constituem menos uma nova teoria do que um catálogo de fatos históricos não inteiramente consistentes com as teorias anteriores”[2]. O que, evidentemente, não excluía a necessidade de atualizá-la. Para tanto, cumpria identificar, dentre os fatos históricos posteriores à síntese de Lênin, aqueles que configuravam novas características a serem integradas na teoria do imperialismo, distinguindo-os dos fatos novos que afetaram as características enunciadas em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, sem, contudo modificar-lhes o conteúdo essencial.

 

Dentre as novidades apresentadas por O’Connor em sua síntese do “imperialismo contemporâneo”, três nos parecem merecer um comentário: (1) a concentração e centralização do capital teriam levado à integração da “economia capitalista mundial nas estruturas das gigantescas corporações multinacionais de base estadunidense”, acelerando a inovação tecnológica “sob os auspícios destas corporações”; (2) a consolidação de uma classe dominante internacional constituída na base da propriedade e controle das corporações multinacionais, o concomitante declínio das rivalidades nacionais [...] nos países capitalistas avançados e a internacionalização do mercado mundial de capitais pelo Banco Mundial e outras agências da classe dominante internacional; (3) a “intensificação de todas estas tendências provocada pela ameaça do sistema socialista mundial sobre o sistema capitalista mundial”[3]O’Connor   registrou o que se tornara evidente desde 1947, com o início da “guerra fria”: as potências imperialistas européias, assustadas pela pujança da União Soviética, abrigaram-se sob a tutela estadunidense, adocicada pelos dólares do Plano Marshall. Já a alegada “consolidação de uma classe dominante internacional” pertence mais à ordem das interpretações do que à das constatações. Seu pressuposto implícito é a atrofia da função de articulação e de condensação da dominação de classe exercida pelos Estados nacionais. Embora não utilize o termo globalização, a idéia está presente. . Vê-se que, no essencial,

 

Lênin dizia ironicamente que os fatos são cabeçudos. Exatamente por isso são muitas vezes irônicos. No momento em que O’Connor publicava sua nova síntese, os Estados Unidos estavam se tornando incapazes de garantir a convertibilidade do dólar, isto é, de trocá-lo por seu equivalente legal em ouro. Desmantelava-se assim o sistema monetário internacional dito do "padrão de troca-ouro" ("gold standard exchange")[4]. Coube a R. Nixon, em 1973, reconhecer esta impossibilidade, “passando o calote” (para retomar expressão dos neoliberais que, evidentemente, só a aplicam para os países escorchados pelo imperialismo) no resto do mundo. Se fosse preciso desmentir a falácia da "globalização", bastaria considerar que a moeda "global" do capitalismo entrou em colapso naquele ano, que marcou o encerramento de um ciclo longo de mais de três décadas de expansão do capitalismo internacional[5]. Pouco tempo depois, concluía-se a gloriosa guerra de libertação nacional do Vietnã. Os valentões do Pentágono abandonaram em debandada a terra em que tinham cometido abjetos e odiosos crimes de guerra. A hegemonia estadunidense descia a seu ponto mais baixo, no plano econômico como no militar e, conseqüentemente, no político.

 

Embora tenha amargado ainda, até o último dos anos 1970, um dólar enfraquecido, sofrendo persistente inflação, o “colosso do Norte”, como dizem seus admiradores, dispunha, entretanto, de reservas estratégicas mais do que suficientes para reverter a situação. A contra-ofensiva inicial desencadeou-se na frente monetária. Em 1979, quando a taxa de inflação do dólar atingira um ritmo anual de 15%, Paul Volcker, que acabara de assumir o comando do Federal Reserve, onde permaneceria até 1987, elevou a patamares inéditos, que chegaram a 20% ao ano, a taxa de juros nos Estados Unidos. Esta medida unilateral (Volcker, abandonou, batendo a porta, uma reunião do FMI em que não conseguira obter apoio dos sócios “ocidentais” para fortalecer o dólar) desencadeou tremendo efeito recessivo, que se propagou por todo o sistema capitalista internacional e, ainda mais duramente, pela periferia, provocando na América Latina, com a chamada “crise da dívida externa”, duas décadas de retrocesso econômico[6]. A recessão também atingiu a sede do Império. Mas para lá afluíram os dólares que estavam “flutuando” nas mãos dos especuladores do mundo inteiro. Sob o efeito cumulativo da hiperbólica elevação da taxa de juros estadunidenses e da “desregulamentação” neoliberal do mercado de capitais, massas crescentes de capital-dinheiro, nas mãos da oligarquia financeira multinacional (cujo surgimento Lênin apontara em 1916) submeteram ao oscilante critério da rentabilidade das aplicações ponderada pela “taxa de risco”, a riqueza e, sobretudo a miséria da grande maioria da humanidade.

 

Estavam reunidas as condições para que Reagan, eleito presidente em 1980, cumprisse sua missão de estafeta do complexo industrial-militar, levando adiante o programa ilustrado na filmografia holywoodiana por Rambo, o herói dos enlatados: restabelecer, “no tapa”, a posição hegemônica do colosso convalescente. A revolução tecnológica promovida pela aplicação da informática à microeletrônica fortaleceu ainda mais o restabelecimento do poderio econômico e do prestígio do Império. Para completar, o colapso do bloco soviético, incapaz de resolver suas contradições internas e de acompanhar a nova corrida armamentista lançada pelo ex-cow-boy canastrão, provocou a ruptura, em favor do bloco capitalista, do equilíbrio estratégico EUA/URSS, reforçando a cartelização político-militar do bloco agrupado na OTAN e abrindo a via para um novo surto de agressões coloniais. Sem mesmo esperar que Boris Ieltsin enterrasse no fétido lodaçal do neoliberalismo os restos mortais da grande revolução de outubro 1917, os valentões do Pentágono invadiram o Panamá com mortíferos bombardeios sobre a população civil, para, logo depois, despejarem sobre o Iraque um dilúvio de bombas, numa das mais atrozes operações genocidas desde a guerra do Vietnã. Os massacres balísticos da Sérvia em 1999[7], do Afeganistão em 2001 e, novamente do Iraque, em 2003, confirmaram mais e mais que há hoje poucos países da periferia a salvo de um ataque semelhante.

 

Há, porém, sérios indícios de que a última expedição colonial contra o Iraque marcou um ponto de inflexão na capacidade do colosso delinqüente fazer prevalecer, pela força bruta das armas de destruição em massa, seus sórdidos interesses de pilhagem e opressão do planeta. É muito significativo que as duas maiores mobilizações de massa da grande jornada internacional de 15 de fevereiro de 2003 pela paz (de que participaram, em centenas de cidades do mundo inteiro, cerca de 12 milhões de manifestantes, considerando que em muitos países a mobilização durou três dias, de 14 a 16 de fevereiro), ocorreram em Londres e em Roma, capitais de dois países cujos governos são sócios menores dos gangsters da Casa Branca[8].  

 

A China e a Rússia, que dispõem dos meios políticos e militares de uma política externa independente (embora a China certamente os exerça, enquanto Putin ainda não deixou clara a efetiva consistência de seu bonapartismo pós-soviético), observaram, com atenção e paciência (e, no caso russo, humilhação), o rolo compressor da OTAN na Sérvia e no Afeganistão. Tudo indica que tiraram destes massacres balísticos uma importante lição: a urgência de superar a recíproca hostilidade que, desde o final dos anos 1950, havia dividido o campo socialista e gravemente prejudicado as lutas anti-coloniais e o movimento anti-imperialista em seu todo. À luz funesta do Iraque incendiado, a simples perspectiva de consolidação de uma aliança russo-chinesa, combinada à recusa da França e da Alemanha em apoiar a agressão colonial anglo-estadunidense, abrindo clara fissura na aliança belicista que há três anos atrás estava coesa no massacre da Iugoslávia, esboçam nitidamente, no cenário internacional, uma nova correlação de forças. Embora nos pareça prematura a hipótese de uma ruptura do bloco imperialista da OTAN, o hegemonismo estadunidense sofreu uma derrota política de grandes proporções. Não que a hora seja de regozijo. Apontando agora seus mega-trabucos genocidas contra a Síria, a Coréia do Norte e Cuba, o Império do dólar e do militarismo delinqüente dispõe de armas de destruição maciça suficientes para manter o planeta em perigo letal. A hora é das fornalhas. Mas, a exemplo de um dos mais inesquecíveis heróis anti-imperialistas do século XX, o comunista Ernesto Che Guevara, persistimos em olhar para a luz.